O cenário é um pouco mais complicado do que nós antecipamos, ou mesmo que estávamos preparados para administrar, mas não podemos baratear nossas pretensões democráticas
As eleições de 2018 no Brasil inflamaram e institucionalizaram uma discussão (de caráter global) que não é nova em nossa arena pública, mas que tem se tornado cada vez mais central desde 2012: a discussão entre economia e identidade na definição da agenda política contemporânea.
Esse debate articula, na verdade, uma oposição entre pautas mais “tradicionais”, focadas em questões compartilhadas de cidadania, como questões de segurança pública e desemprego, e a “nova” agenda política que emerge no século XXI, focada em questões étnico-raciais e de gênero, e que pulveriza as questões políticas e sociais em pautas identitárias parciais e específicas. A grande crítica que esse debate suscita é que o foco na pauta identitária, sobretudo por partidos e movimentos sociais de esquerda, provoca uma fragmentação do campo político, o que leva a um paradoxal enfraquecimento desse campo, que teria interesse e condições de articular e contemplar tais demandas.
Alguns analistas (Mark Lilla é o principal articulador dessa crítica) têm apontado a adoção das pautas identitáriascomo uma das principais variáveis que explicariam a derrota da esquerda nas eleições norte-americanas de 2016, uma linha de explicação que tem sido importada para explicar o resultado das eleições brasileiras de 2018. A solução, para o autor, seria a reorganização da esquerda por meio da retomada das pautas tradicionais, abandonando a ênfase concedida às questões identitárias nos últimos anos.
Essa crítica carrega dois problemas: em primeiro lugar, ela é equivocada na tentativa de separar questões materiais de questões identitárias. A distinção entre economia e identidade é um binarismo popular que simplifica e falsifica a discussão a respeito da cidadania contemporânea. Em segundo lugar, ela deslegitima alguns dos movimentos políticos mais efervescentes e democráticos das últimas décadas, como o movimento negro e o movimento feminista, que vêm oxigenando a política e a sociedade brasileira de forma interessante e necessária (a Bancada Ativista do PSOL, eleita este ano, é um bom exemplo dessa oxigenação).
Sobre a falsa dicotomia entre a pauta política tradicional, que supostamente garantia a partidos e eleitores um horizonte e um ideário compartilhado, é preciso sublinhar que ela não apenas é simplista mas também equivocada: a defesa da ideia de que é possível separar economia de identidade em sociedades contemporâneas, sobretudo em sociedades bastante heterogêneas como a brasileira, demonstra um desconhecimento das dinâmicas e mecanismos de efetivação histórica das dimensões da cidadania, que nunca se deu de maneira isolada de questões de raça, religião, gênero ou orientação sexual.
Discutir cidadania (ou economia, como a pauta tradicional é geralmente apresentada) ignorando os condicionamentos identitários que sempre marcaram essas questões significa apagar a experiência da maior parte da população brasileira para quem a capacidade de trabalhar, ter acesso à saúde, à educação e à segurança está intimamente ligada a ter seus direitos básicos legalmente reconhecidos e protegidos.
O argumento que tenta requentar slogans da década de 1990 (o famoso clintonismo de que It’s the economy, stupid!) é reducionista, e simplifica o nosso contexto político atual, que é absurdamente complexo. É claro que temos um problema material por trás da nossa atual crise política, e que a deterioração da economia no mundo inteiro desde 2008 está por trás desse momento, que não é só brasileiro. Mas esquecer que as duas últimas décadas também foram ciclos de consolidação de pautas marginalizadas, que permitiram a efetivação da cidadania para grandes parcelas da nossa população historicamente excluídas desse processo, é míope.
Assim, me parece que a resposta não está nem em uma coisa nem em outra, e que o nosso principal erro é insistir nessa dicotomia. O nosso problema político contemporâneo não é nem só sobre economia, nem só sobre identidade ou “progresso” social. E o nosso maior erro é insistir nessa noção de que sequer temos demandas que são puramente econômicas ou de direitos de reconhecimento. Ao meu ver, nós mal conseguimos pensar uma coisa sem a outra (e as feministas interseccionais têm nos chamado a atenção para isso desde o final do século XX).
O que as tendências políticas globais tem nos ensinado desde 2016, com a eleição do Trump, é que o cenário da segunda década do século XXI é um pouco mais complicado do que nós antecipamos, ou mesmo que estávamos preparados para administrar. Esse cenário parece apontar que políticas democráticas precisarão complexificar sua narrativa para pensar e propor alternativas eleitorais e participativas em termos de inclusão econômica e em demandas de reconhecimento, simultaneamente. Isso significa, em grande medida, radicalizar a nossa própria compreensão de regimes democráticos, ampliando não apenas o escopo de participação dos mais diversos segmentos da nossa população, como também as formas de efetivação e de exercício da cidadania.
Aqui, chegamos ao problema que apontei anteriormente: a retomada da velha máxima Clintonista sobre a economia não nos ajuda em nada, e ao contrário do que alguns críticos têm apontado, não oferece uma saída real para nossa situação atual. Pelo contrário, seu principal efeito é o de minar e deslegitimar alguns dos movimentos mais interessantes e democráticos que tivemos nos últimos anos. Ao fazer isso, ele contribui para o agravamento da situação que promete resolver, qual seja, essa erosão dos nossos sistemas democráticos. É verdade que, sobretudo no Brasil, os nossos ensaios democráticos nunca foram perfeitos. Contudo, me parece essencial reconhecer que, sobretudo a Nova República (com todas as suas convulsões políticas e sociais) fez bastante por nós —permitiu uma abertura inicial do campo democrático brasileiro que viabilizou a articulação e a concretização de demandas históricas de grupos marginalizados. Isso pode parecer pouco sob a sombra desse neointegralismo que se mostra cada vez mais forte no cenário político e social de 2019, mas pode se mostrar essencial como força de oposição e de resistência democrática nos próximos anos.
Então, antes de reforçarmos de forma acrítica o coro dos que reclamam erroneamente das mulheres, das/os negras/os, indígenas, imigrantes, LGBTQs; e de acusar esses movimentos de estarem atrapalhando ou deturpando o processo político, me parece que precisamos pensar com cuidado o que é essa tal de democracia, e não cair e reproduzir discursos que ajudam mais as nossas elites emboloradas, que nunca foram democráticas ou decentes, do que nós.
Podemos discutir estratégia eleitoral, e pensar o que é mais efetivo e eficiente para conquistar e manter pessoas comprometidas com a democracia no nosso legislativo e nos executivos? Sim, podemos e devemos. Mas não temos mais o luxo de, em pleno século XXI, confundir estratégia eleitoral com plano político, ou sequer de baratear as nossas pretensões democráticas radicais.
Quando fazemos isso, já perdemos o jogo.
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